18/12/2023 às 09h38min - Atualizada em 18/12/2023 às 09h38min

Vó Sá Zinha / Vô Juquinha

Memórias da família na casa dos avós em Salinas

- Anibal Oliveira Freire / Escritor
Memorabilis Saliensis
As casas das memórias do cronista são essa duas entre os postes à esquerda na praça do mercado, onde havia havia três quintais. Foto: João Costa.

 
 
Minha avó só cultivava rosas brancas. Ela era alva como sua mãe, nossa bisavó Clara, que pouco conhecemos mas que nos deixou a impressão de uma pessoa dócil e boa. E de olhos ternamente claros.

Nós outros puxamos os outros lados da família, todos morenos, com exceção de Natália, filha dela, cuja pele o próprio nome denuncia. E que nós, meninos, para pirraçar, chamávamos de “nata”, apenas alguma vez e  rindo porque era uma pessoa sem mácula. Ah!, e  tia Olga, que morava fora, longe, em Diamantina, e que pintava os cabelos de louros, porque era atriz.
 
Na casa grande e velha, caiada de tabatinga, na praça do mercado, abaixo do Grupo Escolar, havia três quintais. No primeiro, cercado por um muro de adobe, havia um tanque e um quarador e alguns pés de rosas brancas. O quarador de  pés de madeira e leito de tela metálica era onde se estendiam as roupas, após enxaguadas com anil. Anil, onde já se viu? Da cor do giz de sinuca!...
 
No segundo, havia alguns pés de figo e de manga espada, acho que também uns pés de marmelo. Do segundo para o terceiro, havia uma cerca com  mourões toscos de aroeira, onde eu vi certa vez Marião, passar por uma brecha como uma flecha sem braços,  para nos avisar que vô Juquinha e’vinha chegando, que parássemos logo com as brincadeiras.
 
O terceiro, era nossa riqueza, vários pés de manga-rosa, que, quando era época, explodiam de doçura e beleza. Atrás, um  muro de adobe com portão para o rio Salinas, onde antes havia um canal, “a bica”,  que levava água para a Usina de Luz da cidade;  depois, as lajes de pedras escuras do rio. Esse o percurso que meu avô fazia todo dia indo da casa pra roça, na outra margem do rio.
 
A Usina de Luz  gerava energia das seis às dez da noite, quando após três apagões intermitentes, apagava de vez. Aí era hora de menino dormir; mais tarde descobrimos que era a hora das raparigas da “Coréia”, dos seresteiros e dos arruaceiros se apresentarem. Mas aí já era outra era, a adolescência.
 
Minha avó adorava lençóis brancos, lavados cuidadosamente com folhas de mamão amassadas e alvejados com anil. Era tudo que precisávamos para nos cobrir de noite naquele calorzão de Salinas. E nos afastar das muriçocas. Lembro certa vez, quando acordei no meio da noite e flagrei o vulto branco, de um anjo, coberto por um lençol branco, com um candeeiro de latão na mão, matando um por um, os pernilongos na parede do nosso quarto, que se desculpou e partiu. Era minha avó. Como dentro de um sonho.
 
Nos dias de chuva, todos os espelhos da casa, da cristaleira, do banheiro, etc., eram cobertos com lençóis, para evitar raios. Superstição ou não, certo é que nunca caiu um raio por lá. Nós rezávamos com medo. Minha avó tinha fé e também suas simpatias.
 
Era muito religiosa, cristã, adorava os padres e as irmãs, mas adorava principalmente o horóscopo de Omar  Cardoso, que assistia todas as manhãs religiosamente na rádio Nacional. E numerologia. Muitos de nós tivemos que trocar de nome para atender aos desígnios dos números. Ou acrescentar um “de” ou dobrar uma letra. Dessas coisas ela não abria mão. Era sua sabedoria. E nossa sustentação mística. Minha avó era uma “santa’.
 
Meu avô, Juquinha, era o antípoda da avó. Bravo demais, sempre de cara fechada.. Não falava com a gente. Só pra “bênção”. Que respondia pra dentro. Resmungando.
 
Conhecido como Juquinha das Cobras. “Das Cobras” era o nome de uma fazenda de seu pai, em Ouro Fino, hoje Freire Cardoso, em Coronel Murta de onde é oriundo. Mas que calhava certo nele. Todo mundo o temia. De perto. De longe, motivo de muitos casos na cidade. Piadas. Anedotas. Verossímeis ou não, compõem a lenda em torno dele.
 
Um caso tido como verdadeiro era que carregava a espingarda cartucheira com sal e pipocava na bunda das mulheres que iam “roubar” lenha na sua roça mais próxima da cidade. No sábado, elas vinham reclamar com vó Sá Zinha, que envergonhada, abria a casa para elas se tratarem, dava dinheiro para elas retirado escondido do paletó de meu avô, que no período da manhã atendia na loja do mercado. Que eu saiba ele nunca notou ou se penitenciava tacitamente.
 
A casa tinha dois lados bastante destacados. Um, onde frequentávamos, claro e grande e outro absolutamente escuro, proibido, onde Marião, uma negona esbelta descendente direta de escravizados, se refugiava, com seus colares e pulseiras de contas, suas miçangas, suas saias rodadas e compridas e seus apetrechos africanos. Atrás da porta da sala de refeições, passando primeiro por um quarto escuro, minha avó se infiltrava ritualmente às tardes das sextas-feiras, para ir ao forno de barro preparar as quitandas da semana, biscoitos de goma, pão de queijo, biscoito voador, etc., que eram feitos em grandes tabuleiros de lata introduzidos no forno quente previamente  alimentado com a queima de muita lenha. Não tínhamos acesso a esse lado da casa mas éramos recompensados por essas maravilhas ainda quentinhas que chegavam lá do fundo e nos calavam.
 
Nessa ocasião também eram finalizados os doces de figo e cidra, em calda e cristalizados, curtidos em calda de cal durante a semana.

Também era o dia do doce de leite cozido em grandes tachos do qual ganhávamos grandes amostras de vovó e o mais importante, a rica “raspa” do tacho. Que era a mais disputada.
 
No fundo desse lado da casa (terreno atualmente pertencente à TELEMIG), havia um pequeno quintal onde morava um cachorro temido, de nome Pretão, que só conhecíamos pela fama de mau e pelos latidos ameaçadores atrás do muro, que nos deixavam sem coragem de vê-lo.

Era o terror dos passantes da rua lateral da casa e o nosso de crianças. Era um mito sua fama. Não o conhecemos.
 
Esse lado escuro da casa foi para nós por muito tempo um mistério insondável. Muito mais tarde quando o conhecemos, após a morte de Pretão, não revelou-se nada de especial, apenas um corredor e quartos vazios mas desconfio que o segredo já fora desfeito. Evolado.
 
Hoje quando leio o conto genial, SOBERBA, de Guimarães Rosa, em que ele descreve a estória de um Coronel que após desavenças familiares, dividiu seu casarão ao meio com a ex-posa, materializando isso com  uma parede e pintando seu lado da fachada de negro, eu tento ter alguma explicação plausível para o nosso caso, mas só consigo visualizar o contraste do lado  claro e meigo de minha avó e o escuro e  amargo do meu avô.

Mas isso não explica nada. E meu avô não era ruim. Nem nunca brigavam. Era só do jeito dele. Sistemático. Como os velhos da época. Mas pior. Em certo sentido... Mas um bom pai e avô. Em todos os sentidos.
 
Vô Juquinha era casmurro, mal humorado, bravo, bravo, sistemático, no fundo era gente boa, mas só que atrás daquela cara fechada, poucos saberiam. Na frente dele, nós, os netos, não dávamos um pio, se não, ele ralhava. E fechava a cara. Naquela época menino não respondia, por lei de Criação, se não, apanhava, só os mais atrevidos, atreviam...
 
Vovó era a antípoda dele, clara, bondosa, religiosa, mas isso agora não vem ao caso.
 
Vô Juquinha  tinha uma fazenda, no outro lado do rio, o rio Salinas, quase seco mas de calha larga, que ele atravessava a vau, pulando lajedos. E uma loja no mercado. Um sobrado. Que vendia armarinhos, ferramentas, sanfona, tudo de “primeira”..
 
Vendia não, ele expunha, mas não fazia questão de vender. A freguesia era mais aos sábados, dia de feira, quando o mercado regurgitava de gente e uns poucos, corajosos, enfrentavam a fúria de Seu Juquinha.
 
Chegavam meio sem jeito, os homens  e as mulheres da roça, e iam perguntando meio de lado, depois mais afoitas, os preços das coisas. Ele calado, atendia taciturno, cara enfezada.
 
“Ô Seu  Juquinha, dá pra descer aquela “fazenda”? Ele subia na escada, buscava a mercadoria na prateleira, as muié olhando, depois pediam outra e outra e outra. Ele já sem paciência, explodia:
 
- Vai levar, leva, se não pode largar aí.
 
Há um anedotário em Salinas em torno dele.  Como Seu Lunga que virou mito no Sertão nordestino, como o Homem mais mal humorado do Brasil. Muita verdade, mas também muita lenda, invenção, contrário ao que se diz, “aumenta mas não inventa”, mas  tudo ficando na conta dele.
 
Uma outra estória, creio que verídica, o freguês pega  uma enxada, ferramentas ele as tinha das melhores marcas, e pergunta:
- É dura, Seu Juquinha?
- Ele diz, morde aí pra você ver.
 
Tem muitas outras, que já ouvi e não registrei, peço aos que as conheçam, que não se avexem, sejam boas ou ruins, falem mal ou falem bem,  mas casos passados vividos testemunhados atribuídos exclusivamente ao Seu Juquinha, postem aqui ou me repassem em particular, para expandirmos também na oralidade a  “MEMORIA VISUAL DE SALINAS”.
 
 
PS:  De nome Amelinda, não sei como veio a dar em Sá Zinha. Dos Miranda, irmã de Zé Miranda, Veraldino (o Helio Bardo), Solange, tia Tancinha, Barbosa, tia Lucy. Filha de vô Simplicio.
 
 

 
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