14/08/2020 às 08h26min - Atualizada em 14/08/2020 às 08h26min

Abração Touro Moreno, meu indomável favorito

Voltei a cruzar com o Touro em evento do Circuito Banco do Brasil de Lutas

- Peter Falcão
Pauta Livre Assessoria
Aos 62 anos, Touro Moreno (centro) entrou no Livro dos Recordes, como o mais velho lutador de boxe do mundo. Filhos Medalhistas Esquiva (dir), de prata, e Yamaguchi (esq), de bronze. Foto: Bruno Marques

Menino, olhava pelo vidro do carro do meu pai, nos muitos passeios entre Santa Cecília e Santo Antônio, os cartazes, em preto e branco, mal colados nos postes, anunciando a luta. 

 

De um lado, o mulato baixo. Do outro: gigantes, musculosos apolíneos, gordos de bermudas acima do umbigo, mascarados, sei lá, gente estranha e fazendo cara de mau.  

 

Combates sem luvas, com poucas regras, sem cerimônias, no Wilson Freitas. Palco, na ocasião, do meu maior objeto de desejo: Show dos Trapalhões. Não sei nem como, mas um dia baixei lá. Foi bacana. Teve até a Eva Wilma, anônima, na arquibancada. 

 

Estava com algumas pautas para cumprir, quando a recepcionista ligou e disse. “O senhor Touro Moreno quer falar com alguém do esporte”. 

 

O primeiro impulso, confesso, foi pedir para voltar outro dia. Mas não resisti e pedi para subir. O Touro, que não aparecia na mídia desde as lutas com Rei Zulu no início dos anos de 1980, entrou imponente. O cara é iluminado, tem carisma de sobra. E é educado, gentil. 

 

Ele queria divulgar luta, aos 62 anos, e entrar no “Livro dos Recordes”, como o mais velho lutador de boxe do mundo.  

 

Eu entrei na conversa, sinceramente, pensando em colher doses generosas para bela especial de domingo, com “cheiro de pinga” na página. 

 

Pois, assim foi. Ele falou das prisões, das maletas de dinheiro que torrava após as lutas em São Sebastião; da famosa briga, nesta mesma região, na qual detonou 11 marinheiros; dos contatos com os Gracie; da vida na rodoviária e muito mais. 

 

Esperei o Paulo Maia chegar para breve bate-papo visando a obter o B.O aproximado do meu personagem.  

 

Percebi que estava frente a frente com batalhador, que se equilibrava na tênue linha que a marginalidade oferece. E que, de vez em quando, caía.  

 

Fiz a matéria de página inteira, na semana que o jornal A Gazeta implantava cores. Na página teste de diagramação, a reportagem saiu colorida. Na hora da impressão, contudo, em preto e branco.  

 

É que as luvas vermelhas do Touro, na imensa foto, chuparam muita tinta. Explicaram. Conformei-me. 

 

Fui pautado para cobrir a tal luta do Touro, no Tartarugão. Beleza, a minha namorada morava a 100 metros do local. A luta seria em três rounds, contra adversário cinquentão (e flácido, com todo o respeito). 

 

Como pouca gente apareceu, adiantaram a programação. Passei a rezar para que chegasse logo o repórter fotográfico, antes que o adversário do Touro beijasse a lona. Não via outra alternativa para a luta. 

 

O Claudney Pessoa subiu na cadeirinha para clicar faltando um minuto para o gongo final. O Touro meteu um diretão de direita no queixo do gordinho que viu estrelas e dormiu profundo. 

 

Depois, Claudney, que fez seis chapas salvadoras, seguiu para outras pautas, nem imaginando que teria foto na primeira página de domingo, com textinho marrento, desta vez, cheirando a torresmo. 

 

Um ano depois, recebo o telefonema. “Irmão, preciso de sua ajuda. A coisa anda difícil”. Era o Touro.  

 

Fui com o meu amigo e repórter fotográfico, Ricardo Medeiros (por sinal irmão do Carlitão, repórter fotográfico e árbitro de várias lutas do Touro) em Vila Velha visita-lo para matéria. 

 

Em casa bem simples, ainda de lajotas, o Touro me contou como estavam sendo difíceis aqueles dias. 

 

Dois garotos socavam a bananeira, ao fundo, indiferentes. 

 

Colhi os dados, Ricardo fez as fotos e quando íamos embora, o Touro me conduziu até a cozinha e levantou as tampas das panelas. Lá se foi meu último vintão da carteira. Mas, com imenso prazer. Éramos parceiros. 

 

Soube que, por meio da matéria, alguém poderoso o ajudou com terreno próximo a Coqueiral de Itaparica, onde montou pequena academia. 

 

Voltei a cruzar com o Touro em evento do Circuito Banco do Brasil de Lutas, do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).  

 

Ele trabalhava na montagem dos ringues durante o dia e à noite assistia às lutas ao lado de, pelo menos, quatro filhos e a esposa. Todos muito bem vestidos, penteados e perfumados. 

 

Touro me abraçou educadamente, mostrando gratidão. Arrumei jeito de encaixar matéria de comportamento, em cobertura que tendia a ser essencialmente factual. 

 

Um ano depois, quando cismei de ser, eventualmente pescador, passávamos na rodovia, próximo à Barra do Jucu, e víamos o Touro correndo, de madrugada e sem camisa, com calça do moletom grená e muita coragem.  

 

Preciso destacar que esta fase de pescador foi a mais difícil que a minha namorada, hoje minha mulher, viveu em todos os tempos. 

 

Deixei A Gazeta e perdi o contato com o Touro. No site da Pauta Livre, empresa que criei ao lado da Lorena Andrade, postava matérias sobre esporte e colocava frequentemente notícias do Esquiva, na época promessa do boxe brasileiro. 

 

Esquiva e eu trocávamos mensagens. Pela parte dele, muito educadamente. Preferi esconder que já tínhamos alguma história. Não queria parecer oportunista.

 

Graças a seus feitos, Esquiva foi descoberto pela grande mídia local. Adorei ter dado aquele empurrãozinho inicial, afinal, era forma de impulsionar o garoto e ajudar o Touro. 

 

Os filhos mais talentosos do Touro foram medalhistas na Olimpíada de Londres, em 2012. Esquiva, de prata, e Yamaguchi, de bronze. Hoje seguem prósperas carreiras no boxe profissional. 

 

Acompanho o Touro pelo noticiário. Pelas dificuldades que passou, o considero merecedor das glórias atuais.  

 

Só espero que não seja tragado pela alma inquieta, agora com dinheiro no bolso. Um beijo, meu lutador favorito. Se cuida, parceiro! 

 


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