28/07/2020 às 08h31min - Atualizada em 28/07/2020 às 08h31min

Com coração despedaçado, encontramos Bigode, um dos maiores injustiçados da Copa de 50

Jogador titular da seleção brasileira na final da Copa do Mundo de 1950

- Peter Falcão
Pauta Livre
O Bigode, como muitos, foi executado. E sem direito à defesa. Aos poucos e com requintes de crueldade. Foto > Chico Guedes

Na redação de A Gazeta, o meu querido amigo Oscar Gomes Filho, na ocasião das comemorações dos

50 anos do Maracanã, me chamou no canto e disse: “Tenho o telefone do Bigode, você quer?”

 

Sinceramente fiz cara de quem não entendeu nada. Pensei em se tratar de bar famoso na Ilha de Santa Maria, onde saboreava cervejas super geladas com a turma do bairro Santa Cecilia.

 

Ele, percebendo minha estupidez, logo acrescentou: “O que tomou o drible do Ghiggia na final da Copa do Mundo de 1950. Ele mora com família de amigos em São Mateus. Tem interesse?”.

 

Bigode nasceu em Minas e defendeu alguns dos principais clubes do país, como o Atlético, São Paulo, Fluminense e Flamengo.

 

Foi titular da seleção brasileira na final da Copa do Mundo de 1950 e um dos apontados, ao lado do goleiro Barbosa, como maior culpado pela derrota por 2 a 1, para o Uruguai, no famoso Maracanazo, que completou, semana retrasada (16 de julho), 70 anos.

 

Bigode foi crucificado porque os dois gols do Uruguai surgiram na lateral esquerda, onde atuava. O cobram, dentre outras coisas, de não ter agido com “necessário” vigor com Ghiggia, autor do segundo gol e peça marcante no primeiro gol, o de Schiaffino.

 

Segundo alguns especialistas tudo se resolveria com boas botinadas nas pernas do atacante uruguaio, principalmente na etapa inicial, para intimidá-lo.

 

Mas, na verdade, levantamentos históricos mostram que o Brasil, nos bastidores, cometeu erros grotescos antes da peleja, que reuniu 200 mil pessoas, principalmente de logística e de preparo emocional para a decisão.

 

O Brasil, ao que tudo indica, tinha pressa demais para se afirmar como o “País do Futebol”.

 

Eu estava vivendo a maior volúpia na minha profissão e era obcecado pela primeira página. Anotei os números e, no outro dia, bem cedo, telefonei.

 

Percebi, de cara, que o Bigode morava, vamos dizer, de favor. A família, de classe média, convivia com problemas de saúde e aparentava ter dificuldades para hospeda-lo.

 

Chegamos na casa, próximo ao Centro Histórico de São Mateus, e nos informaram que Bigode estava na pracinha.

O repórter fotográfico Chico Guedes, de longe, o avistou, não sei até hoje como, e, rapidamente, trocou suas lentes para retratar a imagem perfeita, a de um idoso em completa solidão.

 

Sentadinho no banco da praça era ele mesmo, o Bigode, com camisa branca e calça de tergal, presa em cinto de couro marrom puído.

Nos pés, sandálias velhas. A barba, muito bem feita, mostrava que esperava nossa visita. Pelos óculos de lentes grossas percebia-se tristeza profunda nos olhos.

 

As fotos, consideradas as últimas do Bigode ainda vivo, ocuparam várias colunas na primeira página do jornal e da editoria de Esportes de A Gazeta. A matéria repercutiu um bocado.

 

Recebemos ligações de alguns dos principais jornais e canais esportivos do Brasil que procuravam, desesperadamente, o Bigode para cutucar as feridas da maior tragédia da história do Maracanã. Foi, como previa, furo jornalístico de imensa expressão.

 

Levamos Bigode para a casa onde residia. Sem muita certeza nos contou detalhes da soberba nos bastidores da final da Copa de 1950.

 

E, de forma confusa, mas bem humorada, explicou como foi complicado marcar o Ghiggia que estava, naquela tarde, especialmente infernal.

 

Disse que após a final teve contratos com valores infinitamente menores; que foi perseguido, vaiado durante anos nos estádios, antes mesmo de tocar na bola. Que encerrou a carreira desmotivado, crucificado pela imprensa. Chegou, inclusive, a ficar recluso meses em casa.

 

Incrivelmente, 50 anos depois da final de 1950, Bigode foi acompanhar jogos do São Mateus, no Sernambi, e saiu de lá deprimido pelas aberrações que ouviu dos torcedores. O ser humano, e sua necessidade imensa de agredir.

 

Voltamos para Vitória com a impressão que Bigode estava em sua fase final. Somente Barbosa, o goleiro negro, havia sido tão maltratado.

 

Bigode, também negro, foi apedrejado. Somente os dois erraram na final de 1950? Ou o Brasil, escravagista, escolheu a dedo os crucificados?

 

Bigode viveu mais três anos em São Mateus. Sobre a perseguição que sofreu por causa de um jogo de futebol, a justiça dos homens nunca se prontificou a reparar.

 

Morreu de pneumonia crônica, aos 81 anos. O velho pulmão não aguentou. Mas ouso dizer: também de angústia e solidão.

 

O Bigode, como muitos, foi executado. E sem direito à defesa. Aos poucos e com requintes de crueldade.


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