01/07/2020 às 15h03min - Atualizada em 01/07/2020 às 15h03min

A história e memória da turma de 1970, do Tiro de Guerra de Colatina

“...Aqui não há quem nos detenha. E nem quem turbe a nossa galhardia...”

- Paulo César Dutra
84 soldados que chegaram ao final do período de serviço no Exército, receberam os seus certificados de reservistas. Foto>>Divulgação
Ninguém se importa com histórias de soldados, inclusive alguns daqueles que serviram o Exército, que chamam isto de saudosismo e preferem guardar para si ou até passar uma borracha naquele período. Porém poucos sabem como é importante contar as histórias e mexer na memória daquele tempo em que serviram a pátria, com muita honra.

E aqui, no pouco espaço que tenho, vou memorizar um por cento só da Turma de 1970, do Tirode Guerra – TG-01.108 de Colatina (se fosse escrever tudo, daria uma enciclopédia), que serviu o Exército no período de 30 de janeiro a 30 de novembro daquele ano, da qual fiz parte. O TG de Colatina foi fundado no dia 31 de outubro de 1945, estava completando 25 anos, em 1970, por isto a nossa turma foi chamada de Jubileu de Prata.

A turma que se apresentou no primeiro dia de atividade, era composta por 123 atiradores, em sua maioria já com 18 anos de idade, que felizes ou não, com a nova experiência de vida, seguiram todas as ordens sintonizadas pelo grito 1, 2, 3 , 4, 4, 3, 2, 1. Eram jovens que nas ordens unidas cantavam "...aqui não há quem nos detenhae nem quem turbe a nossa galhardia, brasileiros nós somos, nós somosbrasileiros..."

E o Exército enfrentava naquela ocasião os ataques terroristas do capitão Carlos Lamarca, chefe da organização "Vanguarda Popular Revolucionaria", que invadia os quartéis para roubar armas e munições e matava seus colegas de farda. E quem serviu o Exército em 1970, sabe que foi o ano em que Lamarca mais atacou os quartéis.  E os soldados foram preparados para defender os quartéis, seus familiares e  a pátria, a qualquer custo, inclusive com a própria vida. Isto ficou marcada na cabeça daqueles rapazes no TG-01.108.

E assim, aqueles 123 jovens iniciavam uma longa caminhada que só terminaria no dia 30 de novembro de 1970. Nesta caminhada, de 304 dias, graças a Deus, a turma não teve perdas fatais. Porém muitos deles, ao todo 40, ficaram pelo caminho por indisciplina, doença ou por questões particulares. Entre eles estavam os atiradores Lievore, Zaché, Zanotelli, Lopes, João e Fachetti.

Hoje, passados 50 anos, aqueles jovens, em sua maioria, hoje já com 69 anos de idade, relembram que juntos viveram diversas emoções, algumas delas relatamos aqui. Uma pequena parte dos 84 reservistas, ainda faz os encontros para se lembrar  do período de caserna. Os encontros já ocorreram no sítio do Valbuzza, em Barbados, na  Associação Atlética Banco do Brasil – AABB,   e no cerimonial do Paiva, em Colatina; e na casa de praia do cabo Wagner, em Bicanga, a Serra. Com essa pandemia, não existe previsão para o próximo encontro que seria a comemoração do Jubileu de Ouro da Turma de 1970. Para os encontros casuais da turma o ponto de referência é o bar do major Vilmo (José Vilmo de Souza) que fica em frente a desativada estação ferroviária da Vale,  na avenida Angelo Giuberti, nº  311, no bairro Esplanada.

No primeiro encontro, que foi no sítio do Valbuzza, em 1984, cerca de 30  reservistas apareceram por lá. O segundo encontro, 27 anos depois, aconteceu no dia 4 de setembro de 2011, na AABB. E depois os encontros ocorreram sucessivamente até 2018. Em 2019 não houve o encontro, porque a organização entendeu que era melhor se preparar para comemoração do Jubileu de Ouro, em 2020. Porém, infelizmente a pandemia está aí e temos que respeitá-la. 
 
1º DIA DE CASERNA
 
No dia 30 de janeiro de 1970, os novos recrutas chegaram à Rua da Independência, hoje Rua Geraldo Pereira, no centro de Colatina, na então sede do Tiro de Guerra, que hoje é um supermercado .

Naquele dia, ninguém se arriscou entrar na sede. Eles se aglomeraram nas calçadas da rua e ficaram conversando ou admirando a fachada verde e amarela, uma porta central bem grande, onde todos “passariam muito bem”. No 1º dia, todos estavam, ainda, a paisana e com os cabelos bem grandes. Pouco depois foram convidados a entrar e sentar em cadeiras tipo escolares. Aos poucos, naquele dia, foram se conhecendo. Alguns já eram amigos de escola, futebol, noitadas ou bairros. Mas outros estavam ali, desconhecidos e iniciavam suas amizades.

O sargento Joaquim Gonçalves Serpa, em companhia do sargento Maurício de Oliveira e do cabo Jacir Soares da Silva, que foram nossos comandantes e instrutores, passaram pelo corredor das cadeiras e se postaram no patamar mais alto da sala. Pediram silêncio e corrigiram algumas posturas dos recrutas que estavam lá para recebera 1ª instrução. Muitos estavam com camisas abertas, outros sentados esparramados nas cadeiras.

Primeiro, os comandantes, se identificaram e apresentaram suas funções. E foi assim que o sargento Serpa fez a 1ª chamada dos recrutas, identificando um a um e já fornecendo o nome e número de guerra. O número 70, por causa do ano, foi usado como prefixo da identificação do soldado.

E assim começou a chamada: “Ademir Monfardini, seu nome é Monfardini e seu número é 7001” , disse o sargentoSerpa e assim sucessivamente até chegar ao número 70123. No primeiro dia, alguns convocados nem apareceram. Logo após começou a primeira instrução sobre o comportamento dos soldados e os dias em que teriam de comparecer no quartel do TG. Esses dias eram dadas as instruções teóricas e práticas. Na terça-feira  era pela manhã, na quinta à noite e no domingo, em sua maioria das vezes era o dia todo.

Os soldados aprenderam na primeira semana de instruções que estavam servindo o Exército (que constituía as Forças Armadas do Brasil, junto com a Marinha e Aeronáutica), que é uma instituição permanente e regular, com a missão constitucional, de zelar pela defesa da Pátria.

E logo foram informados que o objetivo dos TG era formar reservistas de 2ª categoria aptos ao desempenho de tarefas no contexto da Defesa Territorial e Defesa Civil. A formação daqueles jovens foi realizada emum período de 304 dias.

Um fato que chamou atenção, naquele período, foi de que a maioria dos soldados teve de conciliar a prestação do serviço militar com as atividades civis. Isto porque os soldados podiam permanecer nos seus trabalhos e nas escolas, além de poder dormir em casa. Exceto no dia em que estivesse fazendo parte do corpo da guarda, durante 24 horas.

E assim aqueles jovens foram aprendendo tudo sobre porque estavam servindo  a Pátria e a sua importância. Aprenderam a manusear o fuzil em combate à distância e na luta corpo a corpo com o sabre. Os soldados aprenderam a desmontar e montar um fuzil em menos de 5 minutos.

E a primeira marcha instrutiva aconteceu em fevereiro, logo após o Carnaval, quando os soldados saíram da sede o TG e seguiram a pé para São Silvano, passando pela 1ª ponte e pelo bairro de Caixa Dágua e depois retornaram pelo mesmo percurso para a sede do TG. Era uma marcha de 8 quilômetros (ida e volta). A segunda marcha foi de 15 quilômetros e aconteceu á noite de ida e volta ao bairro de Maria das Graças.

A terceira marcha foi de 30 quilômetros, em um dia de domingo de dia e o percurso foi da sede do TG à Cachoeira do Oito no leito do Rio Pancas em Colatina, de ida e volta. A última marcha foi de 50 quilômetros, de ida e volta ao distrito de Boapaba (Mutum), em Colatina, onde houve uma simulação de guerra entre as forças regulares (Exército) e as forças irregulares (milícias).

E não só de instruções e marchas foi o ano de serviço dos soldados. O TG participou de ações comunitárias, como projetos com crianças e adolescentes em situações de risco social, campanhas de vacinação e de prevenção de enfermidades, recuperação e conservação de escolas públicas, entre outras ações. Como destaque das ações, estes soldados participaram da Ação Cívica e Social - ACISO no distrito de Boapaba (Mutum) em convênio com a Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes, Governo do Estado e Prefeitura Municipal de Colatina para atendimentos médico e odontológico, vacinação em massa, reforma da escola e da  igreja e a construção da praça do local. Esta ação durou uma semana, e quantas histórias aconteceram naquele lugar, que terminou com desfiles, cívico e militar. 

            Em junho daquele ano, a turma recebeu um novo soldado. Era o Angelo Frechianni Neto, o soldado Frechiani, 70124, que foi transferido do Tiro de Guerra de Viçosa, em Minas, onde ele estudava agronomia. Durante aquele período os soldados aprenderam coisas boas e de vez em quando um grupo aprontava alguma coisa que não era permitido no Exército.

Mas a turma, de mais de 80 atiradores, se divertia e reclamava juntos, principalmente durante as instruções quando surgiam fatos pitorescos a exemplo do Sala e do Spalenza. O soldado Sala que havia ficado de segunda época na escola (hoje é recuperação), e ao ser perguntado pelo sargento Maurício como havia se saído nos exames, pensou que eram os da escola. O sargento havia perguntado sobre os exames de fezes, urina e sangue. O sd Sala respondeu “fiquei de segunda época, sargento”.

Outro caso foi do sd Spalenza sumirdurante nossa participação no ACISO, no distrito de Boapaba e quando foi localizado e chamado atenção pelo sargento Serpa saiu com essa “eu estava na torre da igreja querendo pegar uma andorinha voando”.  Imagine como a turma ria com aquelas coisas. Viravam crianças.
           
Cada um que entrou e saiu, no TG, manteve o espírito de união que sempre se fez fortalecido, a exemplo do dia em que o  sargento Serpa mandou o soldado Lopes, por indisciplina voltar da EscolaAgrícola de Itapina de noite para Colatina à pé, uma distância aproximada de 30 quilômetros.

E para quem achava a turma desunida, teve um exemplo exatamente ao contrário. Naquele dia, os soldados, que estavam na carroceria de um caminhão, se manifestaram em favor do Lopes e falaram  através do cabo Wagner, que toda a tropa faria a pé o mesmo percurso.  Diante da situação o Sargento Serpa de arma em punho, temendo coisas piores, mandou o Lopes subir no caminhão. Foram todos punidos! O Serpa colocou toda a tropa de guarda. Para aqueles rapazes foi um prazer, pois se sentiram mais unidos e fortalecidos, com a atitude, que ao era uma indisciplina
.
Os atiradores aprenderam nas instruções teóricasque a Infantaria, da qual eles faziam parte como cabos e soldados, é a mais antiga arma do Exército e geralmente dotada dos maiores efetivos, formada por militares que podem combater em todos os tipos de terreno e sob quaisquer condições meteorológicas, podendo utilizar variados meios de transporte para serem levados à frente de combate.

De acordo com as instruções a principal missão do Exército é conquistar e manter o terreno, aproveitando a capacidade de progredir em pequenas frações, de difícil detecção e grande mobilidade. Era assim que a infantaria do TG agia.

E durante as marchas e nas instruções práticas os soldados aprenderam como fazer um ataque no campo de batalha, tradicionalmente conhecido como confronto em campo aberto. Aprenderam avançar contra  as posições ocupadas pelo inimigo, desalojá-lo e, então, estabelecer o controle da região. Aprenderam também que a defesa é a operação natural de contra-ataque. Os atiradores aprenderam fazer a patrulha, uma missão mais comum da Infantaria, que consistem em pequenos grupos com o objetivo de descobrir as atividades inimigas com vista a descobrir o seu posicionamento e com vista a emboscar as próprias patrulhas inimigas. 

Na última marcha lá em Boapaba, os soldados puderam experimentar isto, quando uma patrulha comandada pelo cabo Vagner seguiu na frente do pelotão para saber onde estava a força inimiga. E quando achou a força inimiga, foi o maior tiroteio (com balas de festim) que assustou os moradores da região, que não tinham conhecimento que os tiros eram de festim e as granadas eram rojões dentro de mamão verde. E assim era o dia a dia da tropa as instruções no campo.

Após essa marcha, uma novidade no Tiro de Guerra foi a chegada do cabo Wandemberg Satlher, para atuar  na parte administrativa, pricipalmete no controle da frequencia dos soldados. Era mais um amigo da tropa de 1970.
                                                           
Quem chegou ao final
 
Por unanimidade a turma de formatura foi chamada de Honório Fraga, em homenagem ao ex-prefeito da cidade, que foi um exemplo de honestidade e trabalho no municipio e no Estado.  E a formatura aconteceu nos dia 21  e 22 de  dezembro de 1970. Às 8 horas, do dia 21, na Praça  Getúlio Vargas, no centro de Colatina, foi a solenidade, juramento à bandeira nacional e promoção de soldados a cabo. Depois às 9 horas, na rua Don Luiz Scortegna, em ColatinaVelha,  houve a inauguração do Obelisco do Jubileu de Prata da Turma de 1970. E ás 22 horas daquele dia, o baile de Formatura,  no Clube Recreativo Colatinense, na rua Santa Maria, no centro dacidade.

Às 8 horas, do dia 22, os soldados participaram da missa na igreja matriz Sagrado Coração de Jesus. Às 10 horas daquele dia, os 84 soldados que chegaram ao final do período de serviço no Exército, receberam os seus certificados de reservistas em uma solenidade, no cine Idelmar, localizado  na avenida Getúlio Vargas, no centro de Colatina.

Os reservistas que receberam certificados foram: Ademir Monfardini(-), Ademir Pertel, Adilson Fontana, Adilson Pandini, Adilson Torezani, Alcides Domingos Girondoli, Aluncio Damiani (-), Amandio Leal Santana, Antonio Carlos dos Santos, Antonio Carlos Correia Brocco, Antônio Luis Reinoso, Antônio Valbuza (-), Arlindo Fernando Arrigoni, Aroldo Antônio Xibli, Benedito Cordeiro Ramos, Brás Gon, Carlos Oris Gregório, Carlos Roberto Delbem, César Vendramini Filho,  Claudionor  Falcão, Cloves Ribeiro (-), Dirceu Guimarães Horta, Elias dos Santos, Elias Taboza de Lima, Elizeu Araújo Fernandes, Everaldo Pereira dos Santos (-), Elier Luiz Vago, Francisco Humberto Cassundé (-), Fernando M. Almenara Scarton, Geraldo Gomes Loyola (-), Getúlio Vagner Fernandes Jesus, Hilton Minchio, Hugo Carlos Rocha, Iraní Alves Souza, Ismar Rocha (-), Ivo Balarini, Jacy dos Passos Lyrio, Jadir Maurício Teixeira, Jair Dias, Jairis Pulcheri, Jonas Paiva, Jorge Valverde Salume (-), José Adão Martins, José Cuzzuol, José Luis Juliani, José Macedo da Silva, José Manoel da Silva, José Nilso de Lírio (-), José Roberto Delaqua, José Thadeu Tardin, José Tristão Sala, José Vilmo de Souza, Josimar Rodrigues, Jovaldir Modesto Avancini, Laucy Monadi, Leomar José Moreira, Luciano Deli Lucas da Silva (-), Luis Antônio Loyola, Luiz Carlos Ayres de Mendonça, Luiz Carlos de Souza Ramos, Luiz Carlos Spalenza, Mário Jorge Barboza, Maurício José Matias, Milton Gonçalves, Neuber Dalapícola, Nilson Martins Dias, Orly  Batista Monte, Osmar Ferreira, Paulo Cezar Dalla Bernardina, Paulo César Dutra, Paulo Roberto de Oliveira (-), Santos Augusto Cheroto, Sebastião Marques Gomes, Severino Guidoni, Sidenir Rodrigues Gomes, Tercílio Bernardina, Tiago Fernandesda Silva, Valtenir Caldeira Rodrigues, Valter José Tófoli, Valentim Betzel, Waltim Schmidt, Welington Giuberti (-), Geraldo Luiz Prest e Ângelo Frechiani Neto.

Naquele dia, na formatura, o sargento Serpa fez a última chamada da tropa. Era o adeus daqueles jovens soldados, que estavam preparados para defender a Pátria. 
 
Nota do autor do texto - Eu quero apenas preservar as histórias dos meus amigos com quem servi o Tiro de Guerra em 1970, para que talvez as pessoas apreciem um pouco mais o sacrifício dos soldados. Assim foram nossos 304 dias de Tiro de Guerra. Para aqueles que, por vários motivos, nos deixaram e nunca mais os vimos, o abraço e a esperança de um encontro. A nossa amizade àqueles que nos quiseram bem e o nosso perdão àqueles que, por motivos alheios à nossa vontade, não nos compreenderam. Aos meus colegas, alguns deles que já não estão mais na terra,  com os quais passamos juntos tantas horas e carregamos a marca das experiências comuns que tivemos no Exército e conseguimos chegar ao fim da missão, não posso jamais esquecê-los e faço aqui uma saudação às suas memórias. Com a maioria dos meus colegas de TG,  eu falei pela última vezes na  nossa formatura. O tempo passou e eu sinto saudades. Pode ser que um dia eu não veja mais nenhum dos meus colegas, porém, enquanto eu tiver memória e considerá-los amigos de verdade, tenho a certeza de que, ainda que não estejamos tão próximos, sempre haverá amizade, união e lembranças da turma de1970.

(*) Reservista da Turma de 1970 é Jornalista e Radialista Profissional e formado em MKT.  e-mails: dutra7099@gmail.com  ou paulodutra2002@yahoo.com.br  - Cels. (27) 99976.0790 e 99788.9844

 
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