11/01/2021 às 10h25min - Atualizada em 11/01/2021 às 10h25min
A última ‘Taracha’ sem tiros selou a paz na Zona do Contestado-ES-MG
Taracha queria dizer, apertar cerco aos sonegadores de impostos
- Por Paulo César Dutra (Cesinha)
Presente & Passado
Soldados mineiros, em menor número, montaram guarda no Alto São José, na divisa dos estados, para se defender da PM capixaba. Fotos: Arquivo Público Estadual - Reprodução: Cesinha Dutra
Durante os conflitos ocorridos nas zonas limítrofes de Minas Gerais e Espírito Santo, no Norte do Estado, cuja solução final só se deu em 15 de setembro de 1963, ocorreram vários causos interessantes, entre eles, algumas mensagens mal interpretadas.
Entre elas, uma que quase termina em derramamento de sangue, no distrito de Alto São José, no município mineiro de Mantena. Essa mensagem foi entendida pelo serviço secreto da Polícia Militar de Minas como uma operação de invasão da Polícia Militar do Espírito Santo às terras mineiras.
Tudo começou quando uma mensagem radiotelegráfica do Rádio de Campanha do “Quartel General” do Capitão Josias Gonçalves de Aguiar em Barra de São Francisco, Norte do Espírito Santo, na divisa com Mantena, leste de Minas Gerais, dirigida ao Comandante Geral da Polícia Militar do Espírito Santo em Vitória, tenente coronel PM Pedro Maia de Carvalho que foi interceptada pelos espiões mineiros. A mensagem capixaba foi a seguinte: “amanhã, daremos a última Taracha em Alto São José”.
A tradução dos espiões mineiros dada ao termo Taracha era de que haveria uma ação de invasão da polícia capixaba no território de Mantena, no dia seguinte (1º de junho de 1948). A mensagem chegou ao conhecimento do comandante do destacamento da PM mineira em Mantena, que mesmo em desvantagem de efetivo, organizou uma cilada para os capixabas e seguiu para o local disposto a impedir a qualquer preço a invasão. A PM mineira entendeu “a invasão” como uma afronta por parte dos capixabas.
E de fato, ao amanhecer do dia 1º de junho, surgiu no distrito de Alto São José, um destacamento da PM capixaba chefiado pelo 1º tenente Floriano Lopes Rubim. E logo depois o destacamento do tenente Rubim foi reforçado por outro grupo conduzido pelo capitão Florício Santos. Quando a PM capixaba se preparava para a “Taracha”, o capitão percebeu um movimento estranho da PM mineira.
Do outro lado, a PM mineira estava entrincheira com as armas apontadas para a polícia capixaba. Porém, o capitão Florício percebeu a tempo que haveria ali um estúpido derramamento de sangue, sem nenhum motivo e por causa de uma informação mal interpretada. E logo houve tempo para um diálogo entre os comandantes dos destacamentos das PMs mineiras e capixabas.
Não havia nenhuma ocupação e sim, apenas um posto de segurança para a fiscalização da Receita Estadual do Espírito Santo poder atuar na divisa dos estados. O objetivo era de fechar um cerco na rodovia estadual MG -311, de Mantena a Conselheiro Pena, na época era uma estrada de terra batida, a única via de escoamento para o interior de Minas e Espírito Santo. O local era usado pelos sonegadores mineiros e capixabas.
As honras ficaram para o capitão Florício que com isenção e prudência contribuiu decisivamente para que os soldados capixabas e mineiros deixassem o Alto São José naquele mesmo dia, sem que acontecesse um choque trágico entre as duas polícias, por má interpretação da mensagem.
Taracha queria dizer, apertar cerco aos sonegadores de impostos. A ocupação militar no Alto São José por pouco não acaba em derramamento de sangue, desnecessário. Alto São José hoje após o término do conflito e por ironia do destino, não foi invadindo pelos capixabas, mas passou a se localizar do lado do Espírito Santo, no município de Mantenópolis.
O Contestado
Os conflitos não terminavam porque o Espirito Santo e Minas não abriam mão das terras. Para instigar ainda mais a contestação, em 4 de janeiro de 1944, o governo de Minas criou o município de Mantena, englobando toda a área em litigio, Mendes Pimentel, Itabirinha de Mantena, Central de Minas, São João do Manteninha e Nova Belém, que pertenciam ao Espírito Santo, segundo laudo do Exército.
Apesar de não haver confronto direto entre as tropas mineiras e capixabas, a questão dos limites deixou um saldo grande de vítimas, tanto civis e militares, e o número total de mortes ainda é incerto. Militares de Minas e Espírito Santo entrincheirados no mato, nas periferias da cidade, sem banho ealimentado-se precariamente em cozinhas improvisadas.Em 1958, os dois governos retiraram as tropas da região e iniciaram as negociações com base em laudos periciais.
O fim da Guerra do Contestado, terminou em 15 de setembro de 1963, quando, depois de décadas de litígio, Minas e Espírito Santo, pelas mãos, respectivamente, dos governadores Magalhães Pinto e Lacerda de Aguiar, assinaram um acordo de paz. A discórdia começou no início do século passado e seis décadas depois as relações entre os dois estados atingiram o auge do estremecimento, quase resultando em conflito armado.
O motivo era a disputa por uma área rica em plantações de café, o Contestado, de cerca de 10 mil quilômetros quadrados, pouco maior do que a Região Metropolitana de Belo Horizonte, e localizada na divisa dos dois estados. A briga pelos limites teve seu epicentro em Mantena, na Região do Vale do Rio Doce, a 450 quilômetros da capital, e em Barra de São Francisco, no Noroeste do Espírito Santo.
As tropas de prontidão se estranharam, mas não chegaram ao combate. O episódio deixou marcas profundas em moradores e militares, que nunca se esqueceram dos anos de tensão e das confusões administrativas.
“Essa história ainda precisa de estudos, está para ser escrita e pesquisada a fundo. As citações são sempre sobre a Guerra do Contestado, ocorrida entre 1912 e 1916, no Sul do Brasil, e nunca mencionam essa passagem”, diz o mestre em história Francis Andrade, que trabalha com projetos culturais na Prefeitura de Mantena.
A história do Contestado – uma verdadeira “Babel jurisdicional”, como escreveu no seu livro Aspecto policial de Mantena (1958) o capitão da PM de Minas José Geraldo Leite Barbosa – tem suas raízes mais profundas em 8 de outubro de 1800, quando foi instituído um auto de demarcação, motivado pela abertura do Rio Doce à navegação, que determinava a instalação de um posto fiscal para evitar a comercialização clandestina de ouro e diamante de Minas.
Um século depois, em 18 de outubro de 1904, os dois estados adotaram como linha divisória, ao norte do Rio Doce, a Serra dos Aimorés ou do Souza, que, com o tempo e confusão de denominações, se tornou o real pomo da discórdia.
Em 1911, a montanha foi mantida na documentação, levando em conta, ainda, os marcos de 1800. “Enquanto os mineiros diziam que a Serra dos Aimorés estava situada em Água Branca, no Espírito Santo, os capixabas rebatiam, afirmando que era em Conselheiro Pena, em Minas.
E, nesse meio, ficou a região contestada por ambos”, relatou ao EM o ex-prefeito de Mantena Adrião Baía, de 86 anos, que chegou à região aos 18, vindo de Mutum, no Vale do Rio Doce, para trabalhar como escrivão do crime.
O certo mesmo é que a pendenga foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) e, em 1914, resultou num “laudo arbitral”, confirmando a Serra dos Aimorés como divisor oficial. A partir de então, o clima não parou de esquentar e pôs em ebulição o medo, a insegurança e as ameaças.
Segundo o ex-político, “toda localidade tinha dupla jurisdição, convivendo uma autoridade do Espírito Santo e outra de Minas. Quem torcia por Minas, registrava o filho em cartório mineiro, e quem era a favor do Espírito Santo fazia o contrário”.
Mesmo sem confronto direto entre as tropas, a questão dos limites deixou um saldo grande de vítimas civis e militares, e o número total ainda é incerto.
O fim da briga só começou em 1958, quando os dois governos retiraram as tropas da região e iniciaram as negociações com base em laudos periciais.
Em seu livro O passado e o presente de Barra de São Francisco, as escritoras capixabas Marlídia Alves da Silva e Maria da Penha Gomes Lopes relatam que, em 1957, “moradores em pânico” abandonaram suas casas e se refugiaram em cidades vizinhas.
Linha do tempo
1904 – Minas e Espírito Santo adotam uma linha divisória, ao norte do Rio Doce, tendo a Serra dos Aimorés como limite
1911 – Um convênio entre os estados confirma os limites na Serra dos Aimorés ou Souza, gerando confusão na região devido à dupla denominação do maciço
1914 – Supremo Tribunal Federal (STF) ratifica os limites na Serra dos Aimorés. A decisão é “contestada” pelos dois estados, iniciando-se o clima de tensão
1939 – Fracassa a primeira negociação entre os estados para resolver a pendência
1940 – Presidente Getúlio Vargas (1882-1954) designa o Serviço Geográfico do Exército para fazer levantamento na região do Contestado. A comissão formada por geógrafos e engenheiros militares elabora um mapa, no qual consta a mesma divisa das cartas anteriores
1942 a 1948 – Novos choques entre as polícias mineira e capixaba. Soldado de nome Pimenta assassina um militar mineiro devido a insultos e provocações. Nos morros perto de Mantena, soldados capixabas passam as noites em trincheiras à espera de invasão
1948 – Governo capixaba ordena a ocupação do território em litígio por 600 homens “em perfeita organização bélica”
1949 – A região fica ainda mais em sobressalto com a chegada de novos contingente dos dois estados. A tensão aumenta até 1956, quando o governador mineiro Bias Fortes (1891-1971) vai ao encontro do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976), no Rio de Janeiro, e se declara pronto para a conciliação
1957 – Fim da paz que estava perto de ser conquistada. Um deputado capixaba declara à imprensa que “repeliremos a bala qualquer tentativa de agressão”. Para não pagar impostos aos agentes de Vitória (ES), Minas abre variantes fora do alcance dos postos fiscais capixabas
1958 – As negociações são reiniciadas, mediante formação de comissões em cada estado. O litígio vai a julgamento no STF, que também não encontra uma solução definitiva
1963 – Depois de estudo pelas comissões dos dois estados, a história do Contestado chega ao fim, com a assinatura, em 15 de setembro, de acordo entre os governadores Magalhães Pinto (MG) e Lacerda de Aguiar (ES)